Multipropriedade – time-sharing é direito real?

O STJ enfrentou caso original e muito interessante e procurou responder às seguintes questões: o contrato de time-sharing (multipropriedade) possui natureza jurídica de direito real ou de direito pessoal? qual a sua influência no ato de penhora?

O tema é especialmente interessante porque no eixo dos debates se acha a chamada taxatividade dos direitos reais, princípio confrontado com o da liberdade das convenções, que admite, na categoria dos direitos reais, “não somente os enumerados na lei, senão também todos os que possam resultar das convenções que importem em decomposição do domínio e possam por sua vez formar direitos reais distintos, sem ofensa à ordem pública” (Carvalho Santos, citado no aresto).

No caso concreto, o imóvel figurava na titularidade de um empreendedor, que concedeu e organizou  a utilização periódica do bem, com a prerrogativa de representar os titulares do contrato de time-sharing. O direito dos adquirentes seria de caráter meramente pessoal, sujeitando-se a extenso rol de preceitos obrigacionais previstos em convenção ou regulamento interno e que deveriam ser respeitados a fim de possibilitar a fruição do bem.

Disse o ministro RICARDO VILLAS BÔAS CUEVA:

“Trata-se de situação jurídica complexa e atípica que envolve relações obrigacionais específicas interligadas por diversas fontes de interesses – os multiproprietários entre si, e entre estes e a administração do empreendimento – em colaboração recíproca para a satisfação na utilização do bem”.

O tratamento adequado das situações criadas com o fenômeno da multipropriedade reclamaria, diz ele, uma lei específica, harmonizando-se com o disposto no art. 172 da LRP, que estabelece que  no Registro de Imóveis serão feitos “o registro e a averbação dos títulos ou atos constitutivos, declaratórios, translativos e extintos de direitos reais sobre imóveis reconhecidos em lei”. [O ministro cita dispositivo reformado pela Lei 6.216/1975].

Diante da inviabilidade de criação de um novo direito real por convenção privada, o contrato de time-sharing, concluiu o ministro Villas Bôas Cueva, possuiria a natureza jurídica de direito pessoal.

Porém, o voto do ministro JOÃO OTÁVIO DE NORONHA mudaria a sorte do julgado. Contra-argumentando, disse:

  1. Existindo um contrato preliminar formalizado e registrado (instrumento
    particular de promessa de cessão de direitos), em favor do comproprietário e tendo por objeto a fração ideal do imóvel submetido ao regime da multipropriedade, tal registro atribuiria, ao seu titular, um direito real de aquisição (arts. 1.417 e 1.418 do Código Civil)
  2. A natureza jurídica da multipropriedade imobiliária se afeiçoaria e compatibilizaria com a de um direito real, mantendo forte liame com o instituto da propriedade.
  3. O vigente Código Civil não traz nenhuma vedação e nem faz qualquer referência à inviabilidade de consagrar novos direitos reais.
  4. Os atributos dos direitos reais se harmonizam com o instituto da multipropriedade “circunscrito a um vínculo jurídico de aproveitamento econômico e de imediata aderência ao imóvel” e que “detém as faculdades de uso, gozo e disposição sobre fração ideal do bem, ainda que objeto de compartilhamento pelos multiproprietários de espaço e turnos fixos de tempo”.

Logo, em suas próprias palavras, as conclusões seriam estas:

a) a multipropriedade imobiliária, mesmo não efetivamente codificada, possui natureza jurídica de direito real, harmonizando-se, portanto, com os institutos constantes do rol previsto no art. 1.225 do Código Civil; e

b) o multiproprietário, no caso de penhora do imóvel objeto de compartilhamento espaço-temporal (time-sharing), tem, nos embargos de terceiro, o instrumento judicial protetivo de sua fração ideal do bem objeto de constrição de que é cotitular para uso exclusivo e perpétuo durante certo período do ano.

São argumentos respeitáveis e que selaram a sorte do julgado.

Todavia, a decisão não esgota a pletora de graves problemas que a falta de uma regulação específica do instituto acarreta. Divisam-se graves e complexos efeitos decorrentes de sua singela aceitação. Por exemplo, a sucessão de titulares de frações ideais, com a tendência de formação de condomínios complexos – especialmente nas situações de sucessão mortis causa. Ao final e ao cabo, a consagração desses condomínios pode dar aso à reprodução de um fenômeno bem conhecido dos juristas e que acabou por cunhar uma expressão corrente entre os civilistas: condominium mater rixarum.

Divulgamos o v. aresto abaixo, consignando que o nosso colega, registrador Marcelo Augusto Santana de Melo, foi citado e prestigiado no acórdão.

PROCESSUAL CIVIL E CIVIL. RECURSO ESPECIAL. EMBARGOS DE TERCEIRO. MULTIPROPRIEDADE IMOBILIÁRIA (TIME-SHARING ). NATUREZA JURÍDICA DE DIREITO REAL. UNIDADES FIXAS DE TEMPO. USO EXCLUSIVO E PERPÉTUO DURANTE CERTO PERÍODO ANUAL. PARTE IDEAL DO MULTIPROPRIETÁRIO. PENHORA. INSUBSISTÊNCIA. RECURSO ESPECIAL CONHECIDO E PROVIDO.
1. O sistema time-sharing ou multipropriedade imobiliária, conforme ensina Gustavo Tepedino, é uma espécie de condomínio relativo a locais de lazer no qual se divide o aproveitamento econômico de bem imóvel (casa, chalé, apartamento) entre os cotitulares em unidades fixas de tempo, assegurando-se a cada um o uso exclusivo e perpétuo durante certo período do ano.
2. Extremamente acobertada por princípios que encerram os direitos reais, a multipropriedade imobiliária, nada obstante ter feição obrigacional aferida por muitos, detém forte liame com o instituto da propriedade, se não for sua própria expressão, como já vem proclamando a doutrina contemporânea, inclusive num contexto de não se reprimir a autonomia da vontade nem a liberdade contratual diante da preponderância da tipicidade dos direitos reais e do sistema denumerus clausus .
3. No contexto do Código Civil de 2002, não há óbice a se dotar o instituto da multipropriedade imobiliária de caráter real, especialmente sob a ótica da taxatividade e imutabilidade dos direitos reais inscritos no art. 1.225.
4. O vigente diploma, seguindo os ditames do estatuto civil anterior, não traz nenhuma vedação nem faz referência à inviabilidade de consagrar novos direitos reais. Além disso, com os atributos dos direitos reais se harmoniza o novel instituto, que, circunscrito a um vínculo jurídico de aproveitamento econômico e de imediata aderência ao imóvel, detém as faculdades de uso, gozo e disposição sobre fração ideal do bem, ainda que objeto de compartilhamento pelos multiproprietários de espaço e turnos fixos de tempo.
5. A multipropriedade imobiliária, mesmo não efetivamente codificada, possui natureza jurídica de direito real, harmonizando-se, portanto, com os institutos constantes do rol previsto no art. 1.225 do Código Civil; e o multiproprietário, no caso de penhora do imóvel objeto de compartilhamento espaço-temporal (time-sharing ), tem, nos embargos de terceiro, o instrumento judicial protetivo de sua fração ideal do bem objeto de constrição.
6. É insubsistente a penhora sobre a integralidade do imóvel submetido ao regime de multipropriedade na hipótese em que a parte embargante é titular de fração ideal por conta de cessão de direitos em que figurou como cessionária.
7. Recurso especial conhecido e provido.
REsp 1.546.165 – SP, j. 26/4/2016, DJe 6/9/2016, rel. João Otávio Noronha.

 

Um comentário sobre “Multipropriedade – time-sharing é direito real?

  1. Parece-me parcialmente correto o entendimento. Os diretos reais continuam taxativos no Brasil. A multipropriedade, com a devida venia, é apenas uma propriedade compartilhada. Em uma comparação ao direito empresarial, é como se fossem sócios de uma sociedade empresária, cada um com uma cota. Assim, Pessoas que se unem e compartilham de uma propriedade sob a forma de cotas não desnatura o cárter real do direito, podendo, então, sofrer penhora.

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