Indisponibilidade de bens e seus problemas temporais

Ao modo de disputatio do Café com Jurisprudência, coordenado pelo des. Ricardo Dip, hoje vamos apresentar e debater a decisão proferida no Processo 0027391-82.2013.8.19.0061 do Conselho da Magistratura do Rio de Janeiro.

Trata-se de recurso de apelação tirado em processo de dúvida suscitada por oficial do registro de imóveis daquele Estado. O tema debatido era a prevalência e eficácia (ou não) de indisponibilidade de bens em concorrência com título anteriormente prenotado.

O interessado argumentou que a escritura de doação havia sido prenotada anteriormente à decretação da indisponibilidade e que, por força da regra da prioridade registral, aquela inscrição deveria prevalecer.

O Tribunal afastou a argumentação com fundamento no seguinte:

  1. A indisponibilidade de bens se torna plenamente eficaz desde a data de sua decretação, tornando o imóvel inalienável;
  2. A simples prenotação não garante o direito real. Havendo apenas uma mera prenotação, “esta não garante o registro“.
  3. Permitir o registro nessas condições  colocaria em risco o interesse público tutelado pelo regime de direção fiscal ao permitir que os administradores “se desfaçam de seu patrimônio em prejuízo de seus credores e eventuais terceiros atingidos por suas atividades empresariais”.

Vamos à problematização do caso:

1. Indisponibilidade e sua eficácia

O relator fundamentou-se no disposto no § 1º do art. 24-A da Lei 9.656, de 3.6.1998, verbis:

§ 1º A indisponibilidade prevista neste artigo decorre do ato que decretar a direção fiscal ou a liquidação extrajudicial e atinge a todos aqueles que tenham estado no exercício das funções nos doze meses anteriores ao mesmo ato.

Contudo, o referido § 1º deve ser coordenado com o § 5º, que reza:

§ 5º A indisponibilidade também não alcança os bens objeto de contrato de alienação, de promessa de compra e venda, de cessão ou promessa de cessão de direitos, desde que os respectivos instrumentos tenham sido levados ao competente registro público, anteriormente à data da decretação da direção fiscal ou da liquidação extrajudicial.

Pela leitura do aresto, verifica-se que a indisponibilidade de bens havia sido decretada após a prenotação do título. Nesse caso, como veremos logo abaixo, a constrição administrativa não alcançaria o título inscrito no Livro 1 com anterioridade.

Aqui há algumas importantes variáveis. O título prenotado era de doação, portanto uma alienação não onerosa. Não ocorre, aqui, a situação tipológica do terceiro registral que, a título oneroso e fiado na proclamação do Registro, adquire o bem. O sucessor não poderá alegar ignorância do fato que atinge o poder de disposição voluntária do disponente – especialmente nos casos de doação em adiantamento de legítima ou a ascendente.

O que se pode cogitar aqui é que, observando-se estritamente o princípio de prioridade, a doação poderia ser registrada e imediatamente após a prática do ato proceder-se-ia à averbação da indisponibilidade, para acautelar terceiros de boa fé. Esta solução certamente seria menos gravosa – isto do ponto de vista de respeito aos princípios registrais.

Uma questão marginal, que deixo destacada para discussão posterior, é a seguinte: diz a lei que o gravame é ineficaz em face da alienação registrada em data anterior à decretação. Notem que não está dito que o ônus será ineficaz em face da alienação que se faça após a data da decretação, embora a averbação não tenha sido feita.

Nesse caso, isto é, na hipótese da decretação da indisponibilidade ter se dado antes da prenotação (ou do registro, como veremos logo abaixo), ela seria eficaz mesmo sem o concurso do fenômeno da publicidade registral?

É possível acenar com o disposto no inc. III do artigo 54 da Lei 13.097, de 2015? Diz o novem diploma:

Art. 54. Os negócios jurídicos que tenham por fim constituir, transferir ou modificar direitos reais sobre imóveis são eficazes em relação a atos jurídicos precedentes, nas hipóteses em que não tenham sido registradas ou averbadas na matrícula do imóvel as seguintes informações:

(…)

III – averbação de restrição administrativa ou convencional ao gozo de direitos registrados, de indisponibilidade ou de outros ônus quando previstos em lei;

Trata-se do conhecido fenômeno da inoponibilidade dos fatos não inscritos. É o que dispõe § único do dito art. 54:

Parágrafo único. Não poderão ser opostas situações jurídicas não constantes da matrícula no Registro de Imóveis, inclusive para fins de evicção, ao terceiro de boa-fé que adquirir ou receber em garantia direitos reais sobre o imóvel, ressalvados o disposto nos arts. 129 e 130 da Lei no 11.101, de 9 de fevereiro de 2005, e as hipóteses de aquisição e extinção da propriedade que independam de registro de título de imóvel.

2. A prenotação e seus efeitos formais e materiais

O segundo eixo da discussão repousa na conclusão de que a simples prenotação não garantiria o direito real.

É possível divergir respeitosamente.

O art. 186 da Lei 6.015, de 1973, dispõe que o “número de ordem determinará a prioridade do título, e esta a preferência dos direitos reais, ainda que apresentados pela mesma pessoa mais de um título simultaneamente”.

Este dispositivo deve coordenar-se com o art. 1.246 do CC:

Art. 1.246. O registro é eficaz desde o momento em que se apresentar o título ao oficial do registro, e este o prenotar no protocolo.

Da prenotação exsurgem importantes efeitos formais e materiais. Da inscrição primigênia projeta-se a regra de definição e coordenação dos direitos concorrentes e a determinação do marco inicial dos efeitos materiais da inscrição. Prior in tempore, potior in iure.

Logo, não seria correto afirmar singelamente que a prenotação “não garante o registro”. Como se viu, o registro será plenamente eficaz, uma vez consumado, desde o momento em que se prenote o título no Livro 1 – protocolo.

3. Interesse público e os princípios de direito

Diz o v. aresto que permitir o registro da doação colocaria em risco o interesse público tutelado pelo regime de direção fiscal ao permitir que os administradores “se desfaçam de seu patrimônio em prejuízo de seus credores e eventuais terceiros atingidos por suas atividades empresariais”.

Como vimos, a escritura, cujo registro afinal foi denegado, tinha por objeto uma doação. Não se deduz, tout court, dos atos graciosos, a presunção absoluta de boa-fé dos beneficiados, mormente nos casos em que os donatários são descendentes do doador.

O registro da doação deveria ser feito em decorrência da eficácia retro-operante da prenotação. O máximo que se poderia determinar – e aqui se faz uma extrapolação dos estritos limites da dúvida – é que após o registro da doação se lançasse a averbação da indisponibilidade de bens. Ou, ainda, sopesando os riscos inerentes à sucessão de atos praticados, o juízo poderia, a teor do § 3º do art. 214 da LRP, determinar o bloqueio da matrícula, instando o registrador que se comunicasse com a autoridade que determinou a indisponibilidade de bens para aclaramento da situação e para a tomada das providências cabíveis.

Todas essas medidas poderiam ser consumadas sem que se atingisse o princípio jurídico da prioridade.

Os “ônus” ocultos e o clandestinidade jurídica

A questão dos gravames e ônus ocultos representam uma chaga aberta do sistema registral brasileiro, e isto desde os seus primórdios. Sem o apoio da publicidade registral, os direitos privilegiados, as onerações, limitações, restrições e constrições que, por força de lei ou entendimento jurisprudencial, se impõem, rondam como fantasmas e podem colher terceiros de boa-fé, tornando inseguras as transações e intercâmbios imobiliários.

O tema será objeto de discussões em Coimbra nesta primavera, por ocasião do III Encontro Luso-Brasileiro de Direitos Reais.

Deixo as questões em aberto para debates.

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