Escrituração dos Livros

a) – Escrituração dos Livros

a.1) – Matrícula – livro encadernado x fichas avulsas

A escrituração dos livros se apresenta de forma limpa e mecanizada (aparentemente utilizando-se do editor de texto Word e impressora a jato de tinta), sem rasuras ou borrões.

escrituração

Entretanto, diferentemente do que ocorre na maioria dos Estados brasileiros, por determinação da Corregedoria Geral da Justiça (Interior) do TJPA, não são usadas fichas, como faculta a lei (art. 3°, § 2° c.c. art. 173, § único, da Lei 6.015/1973). O Livro 2 é aberto e as suas folhas são previamente emaçadas, numeradas e rubricadas pelo Juiz Corregedor Permanente, diferentemente do que faculta a Lei de Registros Públicos (Art. 4º) que prevê que os livros de escrituração serão “abertos, numerados, autenticados e encerrados pelo oficial do registro”.

Na aparência (e na prática) os livros encadernados se assemelham aos antigos livros de transcrição das transmissões, na dinâmica de traslados dos registros, com a diferença de que os livros são compostos de folhas destacáveis, o que permite que a sua impressão se dê de forma mecanizada. Exemplo: Doc. 1.

Assim, uma vez praticado o ato junto a matrícula, com o esgotamento do fólio, o registro é traslado trasladado? para a folha disponível no livro em uso, lavrando-se as remissões recíprocas. Ocorrendo o esgotamento das folhas do livro corrente, as remissões se repetem nos livros abertos posteriormente, provocando o espalhamento dos atos registrais subseqüentes envolvendo o mesmo imóvel da mesma matrícula.

O procedimento representa desnecessário emperramento do sistema, pois dificulta a lavratura do ato, com a necessidade de remissões recíprocas, além de embaraçar, sobremaneira, a emissão de certidões, porquanto estas remissões devem ser remontadas até a origem, podendo gerar insegurança, nos casos em que, por descuido, ou esquecimento, esta remissão deixe de ser feita.

Esta prática, ainda, não se mostra segura pois ocorrendo erro nas remissões, conforme se verifica no Doc. 2, será difícil, demorado e extremamente complexo localizar a sequência da matrícula, já que não há qualquer outra referência nos indicadores do Cartório.

Por fim, a própria fiscalização judiciária se mostra prejudicada pela complexidade de rastreamento dos atos praticados.

A prática de emaçar os fólios retrocede aos primórdios da Lei 6.015/1973, quando a doutrina controvertia sobre a ficha de matrícula. Afrânio de Carvalho censurou a defesa que dela fez o nosso Elvino Silva Filho, nos seguintes termos:

Com esta segunda franquia criou-se desnecessariamente um risco constante para os direitos inscritos, porque, de um lado, as folhas soltas se desgastam celeremente no manuseio diário e, de outro, se prestam a extravio, casual e fraudulento, bastando lembrar, a propósito deste último, que, preenchíveis a máquina pelo registrador, são também autenticáveis pela rubrica dele, que assim tem um domínio absoluto sobre a escrituração, podendo, quando desonesto, substituir qualquer delas sem deixar o menor vestígio de fraude.

Não se argumente com a possibilidade de reconstituição da folha solta em caso de extravio, como fez brilhante, mas incauto, monógrafo paulista ao responder a esse tópico da minha crítica à primeira versão da Lei. (CARVALHO. Afrânio. Registro de Imóveis. Rio de Janeiro: Forense, 1976, p. 25).

O “incauto monógrafo paulista” defendeu o fólio real e as folhas soltas em monografia publicada ainda no ano de 1974, na vacatio da Lei 6.015/1973. A história demonstrou que a antevisão do registrador paulista era acertada. Não há notícia de graves problemas originados da opção legal, nem se avolumaram denúncias de fraudes em Cartórios que se acham sob a vigilância de corregedorias permanentes.

a.2) – Ordenação dos atos praticados

Por outro lado, nota-se outra erronia no exemplo indicado (Doc. 2), que contrariaria o disposto no art. 232 da Lei 6.015/1973, que reza que cada ato de registro ou de averbação será feito “seguindo-se o número de ordem do lançamento e o da matrícula. Na matrícula 25.619, por exemplo, vê-se o lançamento do R.1 e Av. 1 com o mesmo número de ordem na mesma matrícula. Tal erro se repetirá em outras matrículas.

a.3) – Conservação de livros e papéis

A guarda e conservação de livros é precária.

A Lei 6.015, de 1973, reza que os oficiais devem “manter em segurança, permanentemente, os livros e documentos e respondem pela sua ordem e conservação” (art. 24). Diz, ainda, no art. 25 que “os papéis referentes ao serviço do registro serão arquivados em cartório mediante a utilização de processos racionais que facilitem as buscas, facultada a utilização de microfilmagem e de outros meios de reprodução autorizados em lei”.

escrituração2

O que se verificou nos cartórios visitados (Altamira e Senador José Porfírio) é a mais completa incúria no que se refere à manutenção e conservação dos livros de registro.

As fotos são chocantes – e a reportagem da Jornal da Globo deve ter sensibilizado todos os registradores sérios que tiveram o desprazer de assisti-la.

Além de mal conservados, precariamente alocados – em posições que desfiguram e corrompem a sua estrutura.

a.4) – Recomendações

1. Recomenda-se a adoção de fichas de matrículas, como faculta a Lei 6.015/1973, nos art. 3°, § 2° c.c. art. 173 § único. Assim, as fichas dos Livro 2, organizadas como folhas avulsas, permitem a análise, de uma só vez, de todo o historial jurídico da matrícula, atingindo o objetivo de racionalização perseguida pela reforma de 1973. Além de facilitar a dinâmica do registro, tal propicia uma fiscalização segura e menos afanosa.

2. Recomenda-se a lavratura dos atos como preconiza o art. 232 da Lei 6.015/1973, lançando-se os registros e as averbações em rigoroso ordem numérica sequencial (R.1, Av.2, Av.3, R.4 etc.).

3. Recomenda-se a imediata recuperação e reforma dos livros, com a contratação de especialista em recuperação de documentos, e a adequada alocação e repouso dos livros, de modo a não ofender a sua estrutura.

4. Recomenda-se ministrar aulas práticas sobre manuseio e depósito (repouso) de livros de registro, visando dar maior segurança e proteção a esses importantes documentos.

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Olhando de perto nada é normal

Vamos ajustar o foco nos casos concretos que foram analisados por amostragem.

Centrando a nossa atenção nos Registros de Imóveis de Altamira, de Vitória do Xingu e de Senador José Porfírio, em todos os cartórios inspecionados verificou-se o mesmo padrão:

• registros imperfeitos,

• falta de controle na entrada e tramitação dos títulos,

• inexistência de efetiva qualificação registral (exame de legalidade dos títulos),

• abertura de matrículas com vários e reiterados erros técnicos,

• registros de títulos que instrumentalizam meros direitos pessoais ou possessórios,

• matriculação de áreas excessivas (que extrapolam os limites da comarca),

• falta de controle de disponibilidade,

• parcelamentos irregulares,

• má gestão dos dados,

• manutenção precária de livros e demais documentos das Serventias.

Muitos outros problemas ocorrem e são detalhados a seguir.

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Títulos volantes

À parte as fraudes imobiliárias perpetradas por títulos falsos e por registros irregulares, encontramos títulos de mera posse, de concessão de direitos, de legitimação, de outorga de propriedades em caráter resolutivo. Há certidões extraídas do Registro do Vigário, datas de sesmaria etc., títulos que visavam justificar, legitimar e regularizar a posse, principalmente estimular a efetiva ocupação, exploração e fixação do homem ao campo, cumprindo políticas consubstanciadas em programas sociais de colonização e reforma agrária desenvolvidos ao longo dos tempos.

titulos voltantes

Esses títulos foram expedidos no decorrer de décadas por diversos órgãos – União, INCRA, Estado do Pará, Intendências, ITERPA, Prefeituras Municipais – que, somados aos títulos centenários, oriundos de negócios jurídicos celebrados no final do século XIX e inicio do seguinte, com base em um cipoal verdadeiramente impressionante de leis e regulamentos, acabaram por formar um mosaico de difícil compreensão, regulação, gestão, saneamento e fiscalização.

Tais títulos, por décadas foram expedidos pela União, pelo INCRA, pelo Estado do Pará, pelas Intendências, pelo ITERPA e pelas Prefeituras Municipais. Apoiados em um complexo cipoal de leis e regulamentos, estes títulos somaram-se àqueles centenários que provinham dos negócios jurídicos celebrados no final do século XIX e início do XX, formando um mosaico de difícil compreensão, regulação, gestão, saneamento e fiscalização.

Logicamente, esta intrincada rede de direitos acabou repercutindo no Registro Imobiliário. Por fenômeno de antonomásia, constituindo-se o Registro num poderoso sistema de irradiação e difusão de direitos, atraiu para si o estigma das fraudes por sinalizar, com nitidez impressionante, os interesses contraditórios em jogo, e, via de consequencia, publicando o caos fundiário.

Logicamente, esta intrincada rede de direitos acabou repercutindo no Registro Imobiliário. Poderoso sistema de irradiação e difusão de direitos, por fenômeno de antonomásia atraiu para si o estigma das fraudes e sinalizou com impressionante nitidez os interesses contraditórios em jogo. Via de consequencia, publicou o caos fundiário.

Os títulos de posse, e de tantos outros direitos resolúveis, foram sendo emitidos e trespassados sem qualquer mediação registral, vale dizer, clandestinamente, sem a devida publicidade. Os cartórios se transformaram, rapidamente, em ícone da balbúrdia fundiária e titularizam um protagonismo que não deveria ser exclusivo.

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Matrícula – livro encadernado x fichas avulsas

A escrituração dos livros se apresenta de forma limpa e mecanizada (aparentemente utilizando-se do editor de texto Word e impressora a jato de tinta), sem rasuras ou borrões.

Entretanto, diferentemente do que ocorre na maioria dos Estados brasileiros, por determinação da Corregedoria Geral da Justiça (Interior) do TJPA, não são usadas fichas, como faculta a lei (art. 3°, § 2° c.c. art. 173, § único, da Lei 6.015/1973). O Livro 2 é aberto e as suas folhas são previamente emaçadas, numeradas e rubricadas pelo Juiz Corregedor Permanente, diferentemente do que faculta a Lei de Registros Públicos (Art. 4º) que prevê que os livros de escrituração serão “abertos, numerados, autenticados e encerrados pelo oficial do registro”.

Na aparência (e na prática) os livros encadernados se assemelham aos antigos livros de transcrição das transmissões, na dinâmica de traslados dos registros, com a diferença de que os livros são compostos de folhas destacáveis, o que permite que a sua impressão se dê de forma mecanizada. Exemplo:  Doc. 1.

Assim, uma vez praticado o ato junto a matrícula, com o esgotamento do fólio, o registro é traslado para a folha disponível no livro em uso, lavrando-se as remissões recíprocas. Ocorrendo o esgotamento das folhas do livro corrente, as remissões se repetem nos livros abertos posteriormente, provocando o espalhamento dos atos registrais subsequentes envolvendo o mesmo imóvel da mesma matrícula.

O procedimento representa desnecessário emperramento do sistema, pois dificulta a lavratura do ato, com a necessidade de remissões recíprocas, além de embaraçar, sobremaneira, a emissão de certidões, porquanto estas remissões devem ser remontadas até a origem, podendo gerar insegurança, nos casos em que, por descuido, ou esquecimento, esta remissão deixe de ser feita.

Esta prática, ainda, não se mostra segura pois ocorrendo erro nas remissões, conforme se verifica no Doc. 2, será difícil, demorado e extremamente complexo localizar a sequência da matrícula, já que não há qualquer outra referência nos indicadores do Cartório.

Por fim, a própria fiscalização judiciária se mostra prejudicada pela complexidade de rastreamento dos atos praticados.

A prática de emaçar os fólios retrocede aos primórdios da Lei 6.015/1973, quando a doutrina controvertia sobre a ficha de matrícula. Afrânio de Carvalho censurou a defesa que dela fez o nosso Elvino Silva Filho, nos seguintes termos:

Com esta segunda franquia criou-se desnecessariamente um risco constante para os direitos inscritos, porque, de um lado, as folhas soltas se desgastam celeremente no manuseio diário e, de outro, se prestam a extravio, casual e fraudulento, bastando lembrar, a propósito deste último, que, preenchíveis a máquina pelo registrador, são também autenticáveis pela rubrica dele, que assim tem um domínio absoluto sobre a escrituração, podendo, quando desonesto, substituir qualquer delas sem deixar o menor vestígio de fraude.

Não se argumente com a possibilidade de reconstituição da folha solta em caso de extravio, como fez brilhante, mas incauto, monógrafo paulista ao responder a esse tópico da minha crítica à primeira versão da Lei. (CARVALHO. Afrânio. Registro de Imóveis. Rio de Janeiro: Forense, 1976, p. 25).

O “incauto monógrafo paulista” defendeu o fólio real e as folhas soltas em monografia publicada ainda no ano de 1974, na vacatio da Lei 6.015/1973. A história demonstrou que a antevisão do registrador paulista era acertada. Não há notícia de graves problemas originados da opção legal, nem se avolumaram denúncias de fraudes em Cartórios que se acham sob a vigilância de corregedorias permanentes.

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Vitória do Xingu – uma exceção digna de nota e registro

Cartório do Único Ofício de Vitória do Xingu

Antes de prosseguir, devemos registrar a exceção representada pelo Cartório do Único Ofício de Vitória do Xingu, a cargo do notário e registrador concursado, Dr. Milton Alves da Silveira (Av. Manoel Félix de Farias, 70, CEP 63.383-000, Vitória do Xingu, PA – fone (92) 9155.1773).

Neste Cartório modesto, com instalações muito módicas, os livros e papéis foram encontrados em ordem, bem cuidados, manuscritos e lavrados adequadamente.

As minguadas condições financeiras, decorrentes de gratuidades e exiguidade de serviço, não permitem que o Cartório possa investir em tecnologia, abandonando procedimentos arcaicos e inseguros de registração.

Em decorrência de exiguidade de serviço, o Livro – 1 Protocolo é lavrado manualmente. As anotações à margem do Protocolo (art. 175, V, da LRP) da ocorrência dos atos formalizados, resumidamente mencionados, não é feita regularmente.

Por fim, causa espécie que um Registro de Imóveis possa existir em município que não é sede de comarca, aparentemente contrariando disposições das Leis de Organização Judiciária do Estado do Pará (art. 372 da Lei 5.008, de 10 de dezembro de 1981). Se não existir vedação expressa, é relevante que se considere que um Ofício Predial requer uma infra-estrutura mínima para que possa ser considerado um serviço viável economicamente falando.

Foram selecionados, por amostragem, alguns registros e matrículas, cujo resultado do exame é o seguinte.

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Olhando de perto nada é normal

Vamos ajustar o foco nos casos concretos que fora analisados por amostragem.

Centrando a nossa atenção nos Registros de Imóveis de Altamira, de Vitória do Xingu e de Senador José Porfírio, em todos esses cartórios inspecionados verificou-se o mesmo padrão

  • registros imperfeitos,
  • falta de controle na entrada e tramitação dos títulos,
  • inexistência de efetiva qualificação registral (exame de legalidade dos títulos),
  • abertura de matrículas com vários e reiterados erros técnicos,
  • registros de títulos que instrumentalizam meros direitos pessoais ou possessórios,
  • matriculação de áreas excessivas (que extrapolam os limites da comarca),
  • falta de controle de disponibilidade,
  • parcelamentos irregulares,
  • má gestão dos dados,
  • manutenção precária de livros e demais documentos das Serventias

Esses e muitos outros problemas serão detalhados a seguir.

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Estatizar o que já é estatizado?

Na verdade, a balbúrdia fundiária decorre de múltiplos fatores. Grande parte dos cartórios visitados somente na aparência são verdadeiras delegações a particulares. Na maioria dos casos, são cartórios vagos, interinamente tocados por agentes públicos destacados dos quadros regulares da administração, ou indicados para ocupar temporariamente a vaga.

Biblioteca

De outra parte, não há concursos públicos regulares. Quando ocorrem, as praças não são preenchidas por absoluta falta de interesse, já que os pequenos cartórios, já assoberbados por um volume intolerável de gratuidades, não têm serviço e renda para custear a sua regular manutenção.

Além disso, não há treinamento, cursos de requalificação profissional, fontes de pesquisa e aperfeiçoamento técnico, não há suporte para os pequenos cartórios. Nem investimentos. Nem inclusão digital. Os cartórios, e seus oficiais, ficam siderados, à margem do sistema judiciário, sem acesso aos benefícios tecnológicos que os Tribunais põem à disposição dos cartórios judiciais e que deveriam alocar aos pequenos cartórios extrajudiciais.

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O paradoxo do que é sem nunca ter sido

O equívoco sempre se origina de uma imperfeita compreensão do sistema registral e das vantagens de sua delegação ao particular.

É fácil demonstrar o equívoco que se aninha na proposta. Não é o fato de ser uma atividade delegada que descaracteriza a natureza pública do ofício. Nem é o fato de ser uma atividade pública que deva, necessariamente, ser desempenhada diretamente pelo Estado. Fosse assim, e estaríamos condenando a sociedade a um regime de duro estatismo que a todos parece descabido.

Além disso, não é o fato de ser a atividade desempenhada por particulares que leva necessariamente a situações calamitosas como as observadas na Amazônia Legal. O exemplo da Bahia é suficientemente impressivo: sendo um serviço prestado diretamente pelo Estado, como aviltrado pelo ilustre relator da CPI, ainda assim ocorrem situações situações que guardam absoluta simetria com os casos denunciados na CPI e na representação endereçada ao CNJ.

É o que se vê na reportagem do Fantástico – Fazendas que só existem no papel (14.8.2005). O teor da reportagem merce transcrição:

O palco de golpes envolvendo a posse de terras é o oeste da Bahia, mais precisamente os municípios de Barreiras, São Desidério, Riachão das Neves e Formosa do Rio Preto.

José Queiroz Barreto, também conhecido por Zé Manteiga. Ele se apresenta como corretor de imóveis e faz qualquer negócio para vender fazendas que só existem no papel.

“Você quer, por exemplo, 30 mil hectares em papel? Tem 30 mil hectares em papel”, oferece Zé Manteiga.

E vender fazenda sem terra é a especialidade do corretor Zé Manteiga. “Quantas e quantas empresas têm mais de não sei quantos mil hectares e não têm um palmo. Usa como garantia”.

Garantia para levantar financiamentos em bancos e até para pagamento de dívidas com o governo. Foi assim que o empresário Marcos Valério tentou pagar quase R$ 9 milhões que deve à Previdência. Nas escrituras das fazendas em nome das empresas dele, Seu Gorgônio Tolentino, aposentado como trabalhador rural, aparece como ex-proprietário e teria vendido a Marcos Valério mais de 20 mil hectares.

“Nunca tive conhecimento disso não. Minha terra era uma possezinha e gerou essas fazendas todas. É muita terra. Fazenda pra não acabar mais”, diz Seu Gorgônio.

Seu Gorgônio diz que assinou uma procuração trazida por uma pessoa que ele conhece: “Ele pediu pra assinar, o doutor Leonardo. Assinamos em confiança”.

Doutor Leonardo é advogado, dono de um escritório em Barreiras, a 900 quilômetros de Salvador. A equipe do Fantástico tentou falar com ele. Mas só conseguiu por telefone.

Fantástico: O senhor tem uma idéia de quantas escrituras essa procuração que o Seu Gorgônia assinou gerou?

Leonardo: Três ou quatro escrituras.

Fantástico: Mais de 20.

Leonardo: Não. Três ou quatro, eu fiz.

Fantástico: O senhor cobrou quanto?

Leonardo: R$ 5 mil ou R$ 6 mil.

Fantástico: E essas terras existem?

Leonardo: Aí eu não sei.

Fantástico: O senhor conhece Zé Manteiga?

Leonardo: Conheço.

Fantástico: É seu amigo?

Leonardo: É meu amigo, posso falar que é.

O advogado Leonardo teria prometido pagar R$ 20 mil pela procuração, mas Seu Gorgônio diz que só recebeu R$ 3 mil.

As falsas escrituras das fazendas de papel não seriam feitas sem a participação dos cartórios de imóveis, de acordo com as denúncias. No oeste da Bahia, funcionários da Justiça também são acusados de ganhar dinheiro para criar documentos de terras que não existem.

O Ministério Público da Bahia começou a investigar os cartórios envolvidos. O de São Desidério é acusado de concentrar a maior quantidade de documentos falsos. A Oficial do Registro já responde a um processo administrativo na corregedoria do Tribunal de Justiça.

Em Riachão das Neves, o juiz Gustavo Hungria afastou a escrevente Maria Geane Campos, depois de constatar várias irregularidades. Mas, estranhamente, ela foi transferida para o município vizinho de Barreiras, onde exerce a mesma função, a pedido da direção do Fórum.

“Foi bom que você me avisasse, porque eu vou procurar investigar pra saber. E daí eu vou tomar as providências”, afirma Thadeu Mota, juiz de Barreiras.

O oficial de Justiça Isaías Rodrigues dos Santos trabalha percorrendo o município, tentando cumprir mandados de penhora. Uma de suas últimas missões foi localizar 12 fazendas dadas em garantia por uma empresa de Belo Horizonte a um banco paulista.

Fantástico: Você achou quantas das 12 fazendas?

Isaías: Nenhuma.

Fantástico: Você procurou direito?

Isaías: Sim, estive nos limites e não acho, não existe.

A própria Justiça admite: a área dos quatro municípios envolvidos nessa fraude não comportaria todas as fazendas registradas nos cartórios de imóveis. É tanta facilidade que o corretor Zé Manteiga já tem em casa escrituras prontas pra vender, sem um palmo de terra.

“Essa aqui mesmo é de dois mil hectares, em Riachão das Neves. Tá pra vender”.

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Estatização de Cartórios

As propostas de resolução dos graves problemas apurados pela CPI da Grilagem foram consubstanciadas em sugestões e encaminhamentos que se concretizaram com proposições legislativas.

estatização

 Entre as várias sugestões, destaca-se a proposta de emenda à Constituição estatizando os Cartórios de Registro de Imóveis.

Iniciativa dos deputados Luciano Castro e Sérgio Carvalho, assim se justificava o projeto:

A estatização dos cartórios, principalmente dos cartórios de registros de imóveis, foi defendida em inúmeros depoimentos nesta CPI, entre os quais o do Ministro do Desenvolvimento Agrário, Raul Jungmann, como única forma de bloquear, de fato, a grilagem.

Não há função de índole mais pública do que dizer quem é dono de terra e quais os limites e confrontações dessa terra.

No exercício de suas atribuições, no regime privado atual dos serviços notariais e de registro, quanto mais atos registrais são praticados pelos oficiais de registro, maior o seu ganho.

O apresentante de documento para registro é tratado como cliente, que deve ter sua vontade atendida com rapidez.

A suscitação de dúvida, procedimento necessário para que se evite o registro de títulos fraudados, desagrada tanto o “cliente” como o oficial, que não percebe remuneração para esclarecê-la.

Um negócio de balcão, feito em minutos, demanda ampla apreciação judicial para ser desfeito, produzindo nefastos efeitos jurídicos até o cancelamento do registro.

Se os cadastros rurais, que se destinam, tão-somente, a monitorar a posse e a propriedade da terra, são públicos, mais ainda públicos deveriam ser os serviços de registro, porque o que neles está escrito serve de prova judicial nos feitos possessórios e dominiais.

O desempenho da lide agrária, já sujeito a tantos riscos, não pode ficar à mercê da insegurança jurídica decorrente de registro imobiliário conduzido em regime privado.

Outras iniciativas semelhantes vêm sendo propostas partindo-se, sempre, de premissas falsas, decorrência de desinformação e de falta de conhecimento aprofundado da matéria.

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Cancelamento administrativo de registros e matrículas

No afã de se resolver de maneira racional o grave problema apurado em sucessivas visitas correcionais, a Corregedoria do Tribunal de Justiça do Pará vem propondo medidas tópicas que não têm apresentado resultados satisfatórios.

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A representação encaminhada ao Conselho Nacional de Justiça, subscrita pelo Estado do Pará, Instituto de Terras do Pará, Ministério Público Federal, Incra, Advocacia Geral da União, Federação dos Trabalhadores na Agricultura – FETAGRI e Comissão Pastoral da Terra, toca neste ponto. Ao mesmo tempo em que considera um grande avanço o advento do referido Provimento 13/2006, aponta, contudo, a timidez do Tribunal de Justiça do Estado em levar a efeito o cancelamento administrativo das matrículas e registros eivados de nulidade, nos termos da Lei 6.739, de 1979.

Embora se avalie possível o cancelamento administrativo dos registros e matrículas, com a observância do devido processo legal e com garantia do contraditório, ainda assim o problema não estará plenamente resolvido, já que o volume de irregularidades, alcançando tanto imóveis rurais, como urbanos – conforme se indicará logo abaixo – é de tal monta que ainda assim o sistema estará comprometido e o germe das irregularidades, inoculado no corpo do sistema, haverá de apresentar seus deletérios efeitos patológicos.

Como se verá no final deste sub-relatório, ao par das medidas saneadoras e obstaculizadoras da repercussão de fraudes sucessivas aos registros eivados de nulidades, deverá ser buscada a reestruturação do serviço registral e notarial no Estado, com medidas concretas para degradar, a níveis toleráveis, as assimetrias na prestação do serviço.

Não poderíamos deixar de assinalar (e combater) uma das mais deletérias concepções que subjaz nas propostas reformistas veiculadas com o objetivo de obviar a situação calamitosa de conflitos e fraudes agrários: a estatização dos serviços registrais.

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