Reforma hipotecária de 1854: o “monstro de Horácio”

A tramitação do Projeto de Lei 124, de 1854, de autoria de José Thomaz Nabuco de Araújo seguia sua regular cadência. Ao longe, já investido na condição de ministro da justiça, Nabuco comandava as etapas cruciais da tramitação de seu projeto.

As discussões travadas neste dia (6.6.1855), revelam muito não só das influências que marcaram as referências do Projeto, mas principalmente desvelam o método empregado pelo autor para a sua redação. Neste dia, percebe-se ainda, de maneira muito nítida, o gênio de Nabuco na gestão política.

Relembrando, vimos que na sessão do dia 1.6.1855, o deputado Araújo Lima indicaria que o PL 124/1854, já aprovado em primeira discussão, passasse à segunda “em globo”, isto é, sem a mitigação e discussão artigo por artigo, como preceituava o art. 131 do Regimento.

Em 4.6.1855, o dep. Ferraz manifestar-se-ia no sentido de se proceder como sugerido na indicação do dep. Araújo Lima:

A mesa, a quem foi presente a indicação do Sr. deputado Araújo Lima, propondo que o projecto de lei n. 124 do anno proximo passado que reforma a legislação hypothecaria, e que já foiapprovado em 1ª discussão, entre em 2ª em globo e não artigo por artigo, como prescreve o art. 131 do regimento, é de parecer que se adopte a referida indicação para que melhor possa ser considerado em todas as suas partes o referido projecto, porque comprenhendendo 19 artigos, tornar-se-ha mui demorada a seguramente menos lucida a 2ª discussão, se fôr pelo methodo estabelecido, em detrimento de uma reforma reconhecidamente urgente”.  (Sessão de 4.6.1855).

Já nesta sessão de 6.6.1855 temos um mais desenvolvido desvelamento das discussões que cercaram a tramitação do projeto.  O próprio deputado Ferraz, que havia se manifestado em apoio à discussão englobada, desbordaria seus prejuízos e cautelas, veiculando velada crítica ao projeto.

As cautelas se justificavam. O próprio Ferraz confessaria o apoio dado a Nabuco por ocasião da apresentação do Projeto. Prometera ao ministro da justiça dar-lhe o seu “pequeno contingente em favor desse projecto”. (id. ib. p. 75).  E mais adiante retoma o empenho: “o nobre ministro me tem a seu lado, foi uma pronmessa que lhe fiz” e remata com remoque: “e o nobre ministro sabe que minha palavra não é a palavra de ministros”. (op. loc. cit.).

Bater-se-á o deputado Ferraz pela discussão parcelar, pela cisão do projeto em 3 ou 4 partes – “oito partes”, dirá mais tarde. Não se dobrará à idéia de “tratar enciclopedicamente da matéria”.

A gralha que se orna com as penas do pavão

Nas pouquíssima vezes em que Nabuco intervém nas discussões desse dia é para sugerir a adesão do deputado às ideias gerais do projeto. Nabuco insinua que o deputado Ferraz teria previamente discutido com ele as linhas gerais do projeto – o que levaria o deputado a refutar a insinuação com veemência: “declaro que não tenho parte alguma no projeto”. Logo emenda e aclara, para o registro póstero:

… a gloria pertence toda ao nobre ministro; póde ser que o nobre ministro incluisse em seu trabalho algumas idéas minhas, em virtude de conversações que tivemos, mas eu não emendei nem dei a minha opinião por escripto sobre esse projecto.

Faço esta declaração porque não se supponha que eu tenho parte no projecto, e porque não desejo nunca fazer a figura da gralha que se orna com as penas do pavão”. (idem, ibidem).

A autoridade de Nabuco impressiona. Ferraz dirá que teme só em pensar que o ministro possa cogitar que as suas sugestões fossem tomadas como oposição ao seu projeto. E nos revela um pouco do método utilizado por Nabuco para a elaboração das vigas mestras de seu projeto:

Tenho medo que o nobre ministro pense que estas minhas palavras são a declaração de opposição ao seu projecto, asseguro que não. Se o projecto é grande não é culpa minha, podia ser menor; o miistério quiz seguir o sytema de sir Robert Peel nos seus bills regeneradores: compilou toda a doutrina em voga, quiz reduzil-a a regras, e que essas regras fossem lançadas no seu projecto. Eu louvo este empenho, daqui resultou sua extensão; mas nós podemos aproveital-o reduzindo a discussão a certos pontos cardiaes, que não podem ser mais do que seis ou oito, quando muito oito. Ninguém está mais habilitado para isto do que o nobre ministro, cujas luzes eu não deixarei nunca de reconhecer, cujo merecimento eu invejo”. (id. ib.).

No evolver das discussões, o dep. Paula Cândido parece ser colhido de surpresa. Torna manifesta a sua preocupação com a estratégia que se seguia – possivelmente comandada por Nabuco. Lamentou o fato de o deputado Ferraz não ter veiculado sua proposta de seccionamento da discussão:

… eu pessoalmente lamento que o nobre deputado não mandasse uma emenda para que em vez de discutir-se englobadamente se discutisse dividindo o projetcto em certos pontos cardiaes, em os quaes, dividida a materia, livre e proveitosa fosse a discussão; talvez eu mesmo votasse por essa divisão dos debates”. (op. cit. p. 76).

Monstro de Horácio

De qualquer forma, a discussão artigo por artigo seria considerada inexequível. Concluiu-se que o projeto era urdido por um todo sistematicamente cerzido, fruto de uma mente metódica e racional; a simples possibilidade de sua destrinça poderia colocar em risco o seu sentido de unidade e harmonia.

O deputado Araújo Lima responderia à questão ventilada pelo dep. Ferraz. E ao fazê-lo, vê-se que os sistemas em contraste – o francês e o alemão – foram tomados em conta para a confecção do projeto.  Vale a citação:

Porque é impossível a discussão artigo por artigo? A camara sabe que em debates semelhantes se essa discussão devesse versar artigo por artigo, seria mui difícil ou quasi impossivel obter-se um resultado definitivo. Nesta materia são tantas as cabeças quantas as opiniões. Uns adoptarão o systema francez; seguirão outros o systema allemão; agradará a outros o systema mixto, e a outros a nenhum dos systemas de que se trata. (op. cit. p. 76-7).

E conclui:

O corpo legislativo, composto de tantas intelligencias, em que as opiniões divergem sobre tantos assumptos, não poderia apresentar um systema de legislação seguido, um systema uniforme, apresentaria uma machina desmantelada, apresentaria um monstro de Horácio [1]…” (id. ib.).

A discussão ficaria encerrada pelo adiantado da hora.

Vale a pena perseguir os debates e colher a conclusão, a que eu mesmo cheguei, de que a autoridade de Nabuco se impunha em cada uma das etapas da tramitação do projeto, torcendo as recalcitrâncias e dobrando as eventuais resistências.

[1] – En passant, a expressão “monstro de Horácio” corria na imprensa. José de Alencar que assim qualificava o gênero literário folhetim: “E’ uma felicidade que não me tenha ainda dado ao trabalho de saber quem foi o inventor deste monstro de Horacio, este novo Protheu, que chamam – folhetim” na Revista hebdomadária das Paginas Menores do “Correio Mercantil” de 3 de setembro de 1854 a 8 de Julho de 1855. (ALENCAR. J. Ao correr da penna. São Paulo: Typ. Allemã, 1874, p. 20). A expressão se tornou famosa a partir do poema de Horácio:

Humano capiti cervicem pictor equinam
iungere si velit, et varias inducere plumas
undique collatis membris, ut turpiter atrum
desinat in piscem mulier formosa superne,
spectatum admissi risum teneatis, amici?

(Horácio –  Ars Poetica, 1.1)