Período Republicano – 1899 a 1916

Período Republicano – 1899 a 1916

Mal. Deodoro da Fonseca
Mal. Deodoro da Fonseca

O Regulamento de Nabuco sobreviveria até os estertores do Império.

Será em janeiro de 1890, no Governo do marechal Deodoro da Fonseca (1899-1891), que vem a lume um novo diploma legal reformando a legislação hipotecária.

O Decreto 169-A vigoraria até o advento do Código Civil. Em alguns detalhes o novo regulamento difere do anterior (Lei de 1864). No decreto de 1890, apesar de regular-se pela lei civil, há disposição estabelecendo que a jurisdição será sempre comercial e o foro será estabelecido ou pelo contrato ou pela situação dos bens hipotecados – a escolha do mutuante (art. 14, § 10).

A exposição de motivos não foi publicada na coleção oficial, mas se acha incluída no Relatório do Ministro Fazenda de 1890, apresentado ao chefe do Governo Provisório em 1891 (vide cópia fac-símile abaixo).

Tal Relatório refere-se igualmente aos Decretos 164, 165 e 165-A, todos de 17 de janeiro de 1890 e compõem o capítulo Meio circulante – Bancos de Emissão – Sociedades Anônimas – Crédito hipotecário e móvel, que se acha às fls. 45 et seq. [abaixo]

Ruy Barbosa

O Decreto 169-A seria regulamentado pelo decreto 370, de 2 de maio de 1890. A peça regulamentar vem assinada por Campos Sales, Ministro da Justiça, e por Ruy Barbosa, titular da pasta da Fazenda. Colhe-se a seguinte informação nas Obras Completa de Ruy barbosa:

“Tudo indica ter sido a participação de Campos Sales motivada pela reação do Ministro da Justiça, em sessão do Governo Provisório de 30 de janeiro, quando afirmou, referindo-se à Lei hipotecária, haver verdadeira invasão do Ministro da Fazenda, estabelecendo normas para execução judiciária, justificando-se Ruy Barbosa com a alegação de que tudo o que dizia respeito à legislação hipotecária tinha interesses ligados à administração do Ministério da Fazenda”. (Obras completas de Rui Barbosa. Atos Legislativos. Decisões Ministeriais e circulares. Vol. XVII, T. II, 1890, p. 37, nota 10, abaixo).

Sobre as concepções barbosianas sobre as implicações econômicas do sistema hipotecário – especialmente sobre a circulação da riqueza fundiária com a titularização das hipotecas e da propriedade – vale consultar a excelente réplica oposta aos notários fluminenses na diatribe instaurada a propósito do Sistema Torrens em JACOMINO. Sérgio. Sistema Torrens, 2009).

Campos Salles

Hipoteca de estradas de ferro

O Decreto 169 A, de 19 de janeiro de 1890, inovará a questão do registro da hipoteca de estradas de ferro.

Estradas de Ferro - mapa de 1885
Estradas de Ferro – mapa de 1885

Até 1890 a questão permaneceria em aberto não figurando, entre os dispositivos da legislação hipotecária revogada, qualquer alusão à hipotecabilidade das estradas de ferro, como o que se pode ler no art. 2º, § 1º:

§ 1º Só podem ser objecto de hypotheca:

(…) As estradas de ferro, comprehendendo todos os seus immoveis, accessorios, material fixo e rodante.

A legislação pôs termo a viva discussão doutrinária.

Ruy Barbosa debruçou-se sobre o tema no substancioso parecer que ofereceu à Companhia Paulista de Vias Férreas e Fluviais em 6 de agosto de 1904. No alentado trabalho, onde avulta a doutrina alienígena sobre o tema, chegará à conclusão de que é possível a hipoteca de estradas de ferro o Estado a explora por s i próprio ou a dá em concessão.

Comentando o art. 233 do Decreto 370, de 2 de maio de 1890, diz Ruy Barbosa:

O reg. n. 370, de 2 de maio de 1890,  art. 243 prescreve que “à exceção das concessões diretamente feitas pelo Estado, mediante lei ou decreto, como sejam as de minas, caminhos de ferro e canais, as demais transmissões entre os particulares e o Estado, como pessoa civil, são sujeitas à transcrição do art. 233 dêsse regulamento”.

Ora o art. 233 dêsse regulamento só adscreve à transcrição a transmissão entre vivos “dos imóveis suscetiveis de hipoteca“. Se, portanto, as concessões de vias férreas não importassem direitos imobiliários, suscetíveis de hipoteca, o art. 243 daquele ato não as teria que excetuar do preceito da transcrição, consignado no art. 233.

Logo a seguir, aludindo ao Decreto 169-A, de 1890, dirá:

A nossa lei hipotecária (dec. n. 169 A, de 1890, art. 2º, § 1º, declara que podem ser objeto de hipoteca “as estradas de ferro, compreendendo todos os seus imóveis, acessórios, material fixo e rodante”.

Ora não se poderiam chamar estrada de ferro as linhas interiores de carris, que os particulares assentam e mantêm dentro nos limites de seus estabelecimentos e propriedades. Mas, tirando essas, só nos restam as vias férreas do Estado e as pelo Estado concedidas. A estas duas espécies, logo, é que alude o texto há pouco transcrito. A hipotecabilidade ali determinada abrange, pois, as vias férreas exploradas pelo Estado e as vias férreas exploradas pelas emprêsas a que o Estado as outorga. O decr. de 1890 cortou aqui, assim, a questão sôbre dois pontos contraversos noutros países. As ferrovias do Estado não são propriedades dominiais; não estão fora de comércio; não são inalienáveis (…). Podem ser, portanto, hipotecadas.

Somente mais tarde, pela redação dada pelo Código Civil (art. 852 e seguintes), a matéria será adequadamente regulada. Do Código de 1916, migrou para os regulamentos de Registro e atualmente está disciplinada no art. 171 da Lei 6.015, de 1973).

Queima de arquivos

A leitura das reflexões do Conselheiro Ayres – José da Costa Marcondes Ayres, como se vê em Esaú e Jacó (Cap. XII) -, proporcionou-me uma temporada de fruição verdadeiramente prazerosa. Dei notícia dessa espécie de contradição alhures – estar na Bahia lendo o Memorial de Ayres num resort – “tanta vida lá fora e eu aqui dentro…”.

Angelo Agostini
Angelo Agostini – Emancipação

Mas a leitura de Machado, à parte a viagem psicológica que o texto proporciona, dá-me as chaves para discutir o tema que me entretem ultimamente – velhos e renovados enigmas e desafios do Registro de Imóveis, nomeadamente: qual a razão de Ruy Barbosa haver determinado a destruição dos documentos sobre a escravatura? Além disso, e mais importante, Por que os Registros de Imóveis não cumpriram a determinação legal constante do § único do art. 11 do Decreto 370, de 1891? Diz o dito parágrafo:

Paragrapho unico. Os livros do registro sob o n. 6, nos quaes era transcripto o penhor de escravos, serão incinerados, e si delles constarem outros registros, estes serão transportados com o mesmo numero de ordem para os novos livros de ns. 2, 4 ou 5.

Suspeito que somente um registrador perceberia esse dispositivo solto no conjunto normativo da época, obscurecido, um tanto, pela incandescente verba emprestada por Ruy Barbosa à famosa Decisão de 14 de dezembro de 1890 que determinava a arrecadação e incineração de todos os papéis, livros e documentos existentes nas repartições do Ministério da Fazenda “relativos ao elemento servil, matrícula dos escravos, dos ingenuos, filhos livres de mulher escrava e libertos sexagenários”.

Ruy Barbosa foi injustamente atacado por esse expediente deveras acabrunhante. “Irreflexão, leviandade ou aleivosia – eis o tríptico da malévola e reiterada acusação a Rui Barbosa em torno dos arquivos da escravidão” bradará Francisco de Assis Barbosa na firme refutação das acusações levianas assacadas contra o Águia de Haia (LACOMBE. Américo Jacobina. SILVA. Eduardo. BARBOSA. Francisco de Assis. Rui Barbosa e a queima de arquivos. Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa, 1988, p. 11).

Veremos em outra parte as razões apresentadas pela crítica para justificar a decisão de Ruy.

Interessa-me, aqui, resumidamente, destacar uma passagem de Machado de Assis, aliás da glosa penetrante de José da Costa Marcondes Ayres, Conselheiro Ayres, que retraça e antecipa a trajetória frustânea da Decisão de 1890.

Machado de Assis

Colhe-se do delicioso texto o seguinte:

“Embora queimemos todas as leis, decretos e avisos, não poderemos acabar com os actos particulares, escrituras e inventários, nem apagar a instituição da história, ou até da poesia”. (ASSIS. Machado de. Memorial de Ayres. Rio de Janeiro: H. Garnier. 1908, p. 56).

Os atos particulares, as escrituras tabelioas, os registros hipotecários, os autos judiciais, esse riquíssimo veio nunca se exauriu da informação logo reputada infamante. Remanesce à espera da prospecção inteligente da história.

Várias são as razões de se não terem atendidas as determinações da resolução ministerial. No caso dos livros de penhor de escravos (Livro 6 do Regulamento de 1864) o mais razoável será supor que os penhores ou estariam peremptos ou seriam simplesmente ineficazes depois da abolição. Aliás, tal era a situação dos credores hipotecários e pignoratícios, desfalcados repentinamente da garantia. Vários projetos foram enviados à Câmara e ao Senado para buscar a indenização não só a estes, como, especialmente, aos proprietários de escravos. Vale, como simples exemplos, citar dois (alias reproduzidos no livro acima citado).

Na Câmara colhe-se o projeto encaminhado por Coelho Rodrigues e lido já na sessão de 24 de maio de 1888:

“Fica o governo autorizado a indenizar, em títulos da dívida pública, os prejuízos resultantes da extinção do elemento servil, aos ex-senhores de escravos e aos credores hipotecários e pignoratícios, em relação aos compreendidos nos respectivos títulos de crédito, podendo, para isso, fazer as operações necessárias”. (Anais da Câmara dos Deputados, sessão de 24 de maio de 1888, p. 113-4).

Já no Senado conhecemos a proposta e os argumentos lançados pelo Barão de Cotejipe que trazia, em suas consideranda, a notícia do perecimento da garantia: “Considerando que, em virtude da Lei 1.237, de 24 de setembro de 1864, os escravos pertencentes às propriedade agrícolas – especificados nos contratos – eram objeto de hipoteca e penhor; etc. (Anais do Senado, sessão de 19.6.1888, p. 107).

Os projetos buscavam a indenização pelos prejuízos sofridos com a célere abolição da escravatura, na senda de outros países que igualmente aboliram o vínculo servil. Esse seria o objetivo capital da eliminação dos documentos: fundamentos probatórios para o pleito de indenização.

Ao final e ao cabo, voltando aos velhos e pesados livros, o traslado das ditas transcrições seria custoso e de difícil consumação, já que tal implicaria uma investigação afanoza e de duvidosos resultados práticos. Não foram poucos os registros cujas garantias eram constituídas de escravos e outros bens necessários à lavoura.

Hipoteca e penhor de escravos

O Decreto 482, de 1846, já aludia à “hypotheca” dos escravos (art. 2º). Mais tarde, o sistema registral acolherá o penhor de escravos e a hipoteca destes, considerados bens acessórios do principal (propriedade). Assim dispunha a Lei 1.237 de 24 de Setembro de 1864:

Art. 2.º A hypotheca é regulada sómente pela Lei civil, ainda que algum ou todos os credores sejão commerciantes.

(…)

§ 1.º Só podem ser objecto de hypotheca:

Os immoveis.

Os accessorios dos immoveis com os mesmos immoveis.

Os escravos e animaes pertencentes ás propriedades agricolas, que forem especificados no contracto, sendo com as mesmas propriedades

Devo ao registrador João Pedro Lamana Paiva a observação de que se mantinha a hipoteca de escravos após 1864 – fiado que estava, por ter compulsado inúmeros livros de penhor de escravos, que somente essa modalidade de garantia subsistia.

Debret

Porém, é preciso destacar que a hipoteca de escravos somente se dá conjuntamente com a propriedade, como se vê na parte final do articulado. A mesma lei vai estabelecer que, no caso de escravos, quando considerados destacadamente, teríamos a figura do penhor de escravos; Assim dispunha o art. 6º, § 6º:

§ 6.º O penhor de escravos pertencentes ás propriedades agricolas, celebrado com a clausula constituti, tambem não poderá valer contra os credores hypothecarios, se o titulo respectivo não fôr transcripto antes da hypotheca.

O penhor mercantil de escravos era vedado pelo Código Comercial de 1850 (Lei 556, de 25 de junho de 1850, art. 273) mas previsto indistintamente pelo regulamento hipotecário.

Este Regulamento (Decreto 3453 de 26 de abril de 1865) criou o Livro 6 – transcrição do penhor de escravos:

Art. 30. O livro n.º 6 – Transcripção do penhor dos escravos -, servirá para a transcripção do penhor escravos pertencentes ás propriedades agricolas celebradas com a clausula constituti (art. 6.º § 6.º da lei).

O Decreto igualmente considerou os escravos bens acessórios da propriedade:

Art. 140. Considerão-se accessorios dos immoveis agricolas e só podem ser hypothecados com estes immoveis:

§ 1.º Os instrumentos de lavoura e os utensilios das fabricas respectivas, adherentes ao sólo.

§ 2.º Os escravos e animaes respectivos, que forem especificados no contracto.

O art. 139 é claro:

Art. 139. Póde ser objecto da hypotheca, mas juntamente com os immoveis, a que pertencem, os accessorios dos immoveis, ou os immoveis por destino.

Já apontava em 1866 Agostinho Marques Perdigão Malheiros:

“A hypotheca de escravos não póde hoje recahir senão sobre os que pertencerem a estabelecimentos agricolas, com tanto que sejão especificados no contracto, e só conjuctamente com taes immoveis como accesorios destes, do mesmo modo que os animaes”. (MALHEIROS. Agostinho Marques Perdigão. A escravidão no Brasil. Ensaio histórico-jurídico-social. Parte 1ª – jurídica. Direito sobre os escravos e libertos. Rio de Janeiro: Typographia Nacional, 1866, p. 70, § 49).

Em suma, hipoteca e penhor de escravos o sistema registral os acolheu em seus livros até a reforma de Ruy Barbosa e com isso voltamos ao princípio e ao Conselheiro Ayres.

Finalizo registrando que a edição de Memorial de Ayres, da qual extraio a passagem acima citada, é de 1908, data de falecimento do grande escritor brasileiro. O aspecto mais interessante desta edição – uma “nova edição” da Garnier, aliás do mesmo ano da primeira -, é o fato de que o livro foi adquirido por J. Soriano Netto, “acadêmico de Direito”, como grafaria com sua letrinha caprichada a 5 de julho de 1913 estampando sua assinatura na obra que agora se acha ao meu lado.

Será este mesmo Soriano Netto que não hesitaria em derribar o edifício da fé pública registral, cuidadosamente erigido por Clóvis e abonado por juristas de escol. A tese do brilhante jurista pernambucano, aliás, inquinada com a nódoa do mero interesse advocatício (assim mesmo nos afiança Serpa Lopes) foi ligeiramente sufragada pelos tribunais brasileiros e nos dá, hoje, essa estranha combinação de efeito constitutivo do registro, de boa filiação germânica, com a menor eficácia do registro brasileiro em contraste com os sistemas da mais pura filiação latina.

Coisas do Brasil!

Avalanche indenizacionista

Após a quartelada a que o povo assiste impotente e “bestializado”, o país viveria um período tumultuado relativamente às questões relacionadas com a lavoura e a abolição da escravatura. Após a abolição, vários foram os projetos “indenizaconistas” – propostos, por exemplo, por Coelho Rodrigues, Cotejipe e João Alfredo² -, somente arrefecendo com a proclamação da república e, especialmente, com a atuação firme e decidida de Ruy Barbosa.

Bandeira do Brasil - Primeira República
Bandeira do Brasil – Primeira República

A resposta aos “aristocratas mendicantes”, que pleiteavam alguma forma de compensação pela abolição imediata e sem indenização, articulada no requerimento firmado por Anfriso Fialho e outros, viria em forma de despacho ministerial:

Despacho do Ministro da Fazenda.

Requerimentos despachados:

De José Porfírio Rodrigues de Vasconcelos e seus filhos, José Melo Alvim e o Dr. Andriso Fialho, apresentando as bases para a fundação de um banco encarregado de indenizar os ex-proprietários de escravos ou seus herdeiros, dos prejuízos causados pela lei de 13 de maio de 1888, deduzidos 50% de seu valor em favor da República,

Mais justo seria, e melhor se consultaria o sentimento nacional, se se pudesse descobrir meio de indenizar os ex-escravos, não onerando o Tesouro. Indeferido. (Diário Oficial. Rio de Janeiro, 12 de novembro de 1890, p. 5.216, col. 2).

Mas as medidas tomadas pelo Ministro da Fazenda não se deteriam ali. Logo a seguir, a 14 de dezebro de 1890, Rui Barbosa proferiria uma decisão polêmica, cujo texto integral é este:

Decisão s/n. de 14 de dezembro de 1890

Manda queimar todos os papéis, livros de matrícula e documentos relativos à escravidão, existentes nas repartições do Ministério da Fazenda.

Ruy Barbosa, Ministro e Secretário de Estado dos Negócios da Fazenda e presidente do Tribunal do Tesouro Nacional:

Considerando que a nação brasileira, pelo mais sublime lance de sua evolução histórica, eliminou do solo da pátria a escravidão — a instituição funestíssima que por tantos anos paralisou o desenvolvimento da sociedade, inficionou-lhe a atmosfera moral;

Considerando, porém, que dessa nódoa social ainda ficaram vestígios nos arquivos públicos da administração;

Considerando que a República está obrigada a destruir êsses vestígios por honra da Pátria, e em homenagem aos nossos deveres de fraternidade e solidariedade para com a grande massa de cidadãos que pela abolição do elemento servil entraram na comunhão brasileira;

Resolve:

1º — Serão requisitados de todas as tesourarias da Fazenda todos os papéis, livros e documentos existentes nas repartições do Ministério da Fazenda, relativos ao elemento servil, matrícula dos escravos, dos ingênuos, filhos livres de mulher escrava e libertos sexagenários, que deverão ser sem demora remetidos a esta capital e reunidos em lugar apropriado na Recebedoria.

2º — Uma comissão composta dos Srs. João Fernandes Clapp, presidente da Confederação Abolicionista, e do administrador da Recebedoria desta Capital, dirigirá a arrecadação dos referidos livros e papéis e procederá à queima e destruição imediata deles, que se fará na casa da máquina da Alfândega desta capital, pelo modo que mais conveniente parecer à comissão.

Capital Federal, 14 de dezembro de 1890 — Ruy Barbosa. (Obras completas de Rui Barbosa, Vol. XVII, 1890, tomo II, pp. 338-40).

Vimos no artigo Soriano Neto, Machado, Ruy e a queima de arquivos que outra disposição incendiária de Ruy seria veiculada em 1891 por meio do Decreto 370, cujo parágrafo único do art. 11 registrava:

Paragrapho unico. Os livros do registro sob o n. 6, nos quaes era transcripto o penhor de escravos, serão incinerados, e si delles constarem outros registros, estes serão transportados com o mesmo numero de ordem para os novos livros de ns. 2, 4 ou 5.

Princesa Imperial D. Isabel do Brasil
Princesa Imperial D. Isabel do Brasil

Qual a razão dessas medidas?

A resposta que se fez corrente é: eliminar os comprovantes fiscais que se achavam no Ministério da Fazenda e que poderiam servir de base e fundamento à onda indenizacionista.

O texto da decisão de 14 de dezembro de 1890 parece centrar o seu foco nos arquivos da administração fazendária.

Segundo Francisco de Assis Barbosa, os objetivos de Ruy Barbosa (e de seu sucessor, Alencar Araripe) se resumiriam a eliminar o comprovante fiscal da propriedade servil, esboroando a evidência da propriedade do escravo:

É importante insistir no objetivo determinante dos atos, tanto o de Rui Barbosa, como do seu sucessor Alencar Araripe, que era o de eliminar o comprovante fiscal da propriedade servil, para assim evitar, como salientamos, a situação de fato, sempre questionada na época, em torno da propriedade do escravo, desde que a entrada de africanos fora considerada ilegal pela lei de 7 de novembro de 1831, assinada por Diogo Antônio Feijó, ministro da Justiça, declarando livres todos os escravos vindos de fora do Império e impondo penas aos importadores dos mesmos escravos. Lei que, seguida do Decreto de 12 de abril de 1832 e assinada ainda por Feijó, regulamentou a anterior sobre o tráfico de africanos”. (BARBOSA. Francisco de Assis. Apresentação in Rui Barbosa e a queima de arquivos. LACOMBE. Américo Jacobina. SILVA. Eduardo, BARBOSA. Francisco de Assis. Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa, 1988, p. 19).

Como se vê, a entrada ilegal de escravos deixou um rastro probatório que os republicanos gostariam de apagar, desfalcando seus antagonistas de um poderoso foco de tensão política, livrando muitos dos que já se alinhavam em suas fileiras – à parte o comprometimento do orçamento com o pagamento de indenizações.

Mas e a disposição do Regulamento Hipotecário? Essa disposição descansou na remansosa irrelevância das questões técnicas e jurídicas. Não há registros desse dispositivo legal nos acesos debates sobre a queima de arquivos e em seus livros.

Crimen fué del tiempo…

Américo Jacobina Lacombe encerra o seu texto lembrando o verso do poeta hispano-americano: crimen fué del tiempo, no de España (op. cit. p. 39).

Com isso absolve Ruy Barbosa pelo cometimento que não hesitou em qualificar de “pedra de escândalo” da nossa história cultural. Aliás, diga-se de passagem que Lacombe faz uma defesa paradoxal de Ruy, pois não hesita em qualificar o ato ministerial de “espetáculo inquisitorial”, “desvario”, “espantosa obnubilação do pensamento nacional”, “espantoso ato de vandalismo”, “malefício” – vituperando o ato realmente abominável.

Muito mais lúcida, sem dúvida, terá sido a voz dissonante de Francisco Coelho Duarte Badaró (MG), que em sessão que aprovaria a moção de apoio à iniciativa de Ruy Barbosa ousou discordar de seus pares:

“Sr. Presidente, não quero que ninguem entenda que, ao levantar para pronunciar-me contra esta moção, eu pretenda condemnar a obra meritoria dos abolicionistas. O que faço é protestar contra o acto de cremação de todo o archivo da escravidão no Brazil, porque envolve interesse historico. Nós, em vez de procurarmos destruir, o que é uma obra de verdadeiros iconoclastas, deviamos ter a nossa Torre do Tombo, um edificio destinado a recolher os papeis de todos os archivos do paiz.

Somos um povo novo que corremos o risco de ter difficuldades para escrever a nossa historia, porque é deploravel o que se observa em todas as municipalidades e nas repartições das antigas provincias: por toda a parte o mesmo abandono, o mesmo descuido, e por ultimo o facto de mandar-se queimar grande numero de documentos que podiam servir para se escrever com exactidão a historia do Brazil, no futuro. (Muito bem; muito bem.)”. (Diário de Notícias, Rio de Janeiro, 22.12.1890, p. 1).

Os livros de registro sobreviveram

Penhor de Escravos
Livro de Transcrição de Penhor de Escravos – 1
Penhor de Escravos
Livro de Transcrição de Penhor de Escravos – 2

Apesar do “desvario” barbosiano, suas determinações ministeriais não se concretizariam plenamente – apesar das fogueiras acendidas em 1891 no Rio de Janeiro e em 1893 na Bahia.

Saúdam os defensores de Ruy Barbosa que a sua criticada decisão não se cumpriria por uma triste sina da administração pública brasileira – afinal, neste país nem todas as leis e decisões são feitas para serem cumpridas! Fosse de outra forma e “a nossa emperrada máquina burocrática terá funcionado eficazmente pela primeira vez, para nossa infelicidade”. (LACOMBE. Américo Jacobina. op. cit. p. 35).

Seja como for, as decisões dos primeiros republicanos não foram atendidas. Comprova-os arquivos dos Registros de Imóveis espalhados por todo o país, que mantiveram, diligentemente, os seus livros de registro intactos e preservados do incêndio republicano.

Passeio aos livros de registro

V. pode consultar aqui uma seleção de registros feitos no Livro de Transcrição de Penhor de Escravos, que se acha mantido e conservado no Primeiro Registro de Imóveis da Comarca de Franca, neste Estado, a cargo do registrador Lincoln Bueno Alves, a quem agradeço o acesso e manuseio dessas preciosidades.

PDF logoTranscripção de Penhor de Escravos. Extrato.

Notas

¹ Confira: Soriano Neto, Machado, Ruy e a queima de arquivos e Memorial de Ayres, texto do Dr. Ermitânio Prado.

² A reprodução dos projetos referidos podem ser apreciados no livros Rui Barbosa e a queima dos arquivos. LACOMBE. Américo Jacobina, SILVA. Eduardo, BARBOSA. Francisco de Assis. Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa. 1988, p. 51 et seq.

Legislação

Addenda